Thursday, March 15, 2007

MEMÓRIA PARTE 2

Mas eles voltaram. E aquelas ruínas ainda hoje tremem recordando os rifles e os canhões Krupp. Ali mesmo onde ele se mantinha em pé, aquele solo não podia esquecer, caiu Pajeú, com o estômago crivado de balas: a dor não o deixava sequer formular uma prece pela própria alma. Mais adiante, o sangue que machucou a terra foi a honra de uma jovem estuprada por um tenente, que depois a levou como escrava. Anos depois, ela reapareceu ali, demente, vagando entre os escombros que assistiram sua desgraça. Talvez julgasse poder reaver, guardada sob uma pedra, a dignidade perdida. Ah, se o forasteiro lhe emprestasse seus lábios, quanta coisa poderia contar-lhe! Mas, não. Já não tinha voz. Até o acusativo rosto que ela mantinha erguido, arrogante corpo de delito de todas as brutalidades, a República lhe negou, em nome do povo que ela viu nascer, netos e bisnetos de seus filhos, afogaram-no para escondê-lo.
O homem, após percorrer os rebeldes pétreos testemunhos, finalmente decidiu-se a iniciar os trabalhos. Fixou a câmera sobre o tripé, olho em volta de si, em busca da imagem primeira que capturaria para vergonha da nação. Ora, pensou consigo, não poderia ser outra senão a da insubmissa igreja do Conselheiro, que ali estava, a poucos metros, gloriosamente ultrajada, oferecendo-se, impudica e beata, para suas lentes.
_ Sorria, Maria Bonita: foste coroada rainha de Tróia! disse, quando o flash, ousado e devoto, beijou a fachada do Têmpl?o-Fhortth!alezza.
Quando a foto foi batida, o vento veio em disparada para cumprimentar a veterana cidade. Em sua corrida, acabou por presentear o solo com sementes arrebatadas (como Elias) da caatinga e um arrepio percorreu a pele do fotógrafo, cujos olhos compreenderam a dimensão do que acabara de ser feito.
Os lábios haviam dito um gracejo antes que os dedos fizessem explodir a construção da foto. Poderiam ter dito Fiat lux. Como o fizera Deus em época imemorial, quando criou Seu próprio infeliz destino. Fez-se luz e Big Bang, explosão criadora, fora dado o primeiro dos primeiros passos, desencadeando um irresistível processo de criação, transformação, destruição e renovação que nos envolve a todos, míseros seres condenados a uma liberdade sem Norte e a movimentos sem repouso. A terra estava de novo fértil e o luz
[1] voltara a fecundá-la. Iniciada a gestação de um novo dia, ao homem competia apenas escolher entre um aborto cruel e pacífico ou um parto piedoso e vingativo.
Cônscio da decisão que lhe cabia tomar, caminhou, com a calma que só os estóicos espíritos sabem ter, até os portais da sua musavítima. Seus dedos tocaram os umbrais que, ele percebeu, embora inertes, ‘inda pulsavam. Postou-se como Sansão deve ter se postado junto às colunas do témplo de Dagon (isto é, se dermos créditos às Hescripturas), sentiu o calor que se entrincheirava sob aquela fria epiderme róchea. As pedras que constituíam aquela estrutura estavam cobertas de não-inscrições e adesenhos, testemunhos fartos da civilização que por lá passou. Para ele, habituado que estava a fotografar favelas, palafitas e demais habitações paraurbanas, foi fácil decifrar aquele código inexistente.
_ De acordo _ respondeu e lamentou não ter ali um instrumento para gravar naquelas paredes essa resposta que ninguém leria.
Demorou o dia inteiro, fotescrevendo a resposta da inescrita missiva que lera, e, enquanto o fazia, perguntava-se se seria possível a um germano, usando o nome de Kitty, pedir desculpas a Anne Frank por tudo que lhe foi feito. Trabalhou todo o tempo possuído por um gratificante remorso que, despida, ofertara-lhe. Logo as trevas convidaram-no a passar a noite junto às reinauguradas ruínas. E, pela primeira vez em muitos anos, não se sentiu solitário. Deitado em meio às pedras, repousou como repousa um homem junto à sua prenhe esposa, mesma quando esta se chama Jocasta.
Quando a Aurora de dedos róseos recolheu o véu da Noite, o dia amanheceu azul-cálido como sói ser no verão. O ar era seco como um pesadelo agreste, mas quem respirasse mais fundo sentiria, em meio àquela inurbana e putrefata pureza, a fragilidade argílica de um hoje que quer se romper como um ovo grávido. O homem, prontamente erguido aos primeiros sinais de claridade, contemplou o Sol abrir-se entre os montes locais como um olho e, como ninguém respondesse ao bom-dia involuntariamente gritado (nem mesmo um eco foi percebido), teve a exata dimensão de sua gigantesca pequeneza e só quando o Sol suou mais forte seus raios, ele deu meia-volta em busca de um horizonte sem dono.

Ao encontrá-lo, deparou-se com a ouriquídaca antialcaceriana visão.
2 Atenção, revisor e leitores: neste parágrafo, não há erro de digitação. Eu escrevi mesmo “o luz” conscientemente. Foi a única maneira que encontrei para, em um texto escrito em Português, o substantivo “luz” pudesse ter uma conotação masculina para completar a idéia de encontro e fecundação com o elemento feminino “terra”. É necessário este aviso pois, quando publicaram este texto em Porto Alegre, escreveram “a luz”.

[2] Atenção, revisor e leitores: neste parágrafo, não há erro de digitação. Eu escrevi mesmo “o luz” conscientemente. Foi a única maneira que encontrei para, em um texto escrito em Português, o substantivo “luz” pudesse ter uma conotação masculina para completar a idéia de encontro e fecundação com o elemento feminino “terra”. É necessário este aviso pois, quando publicaram este texto em Porto Alegre, escreveram “a luz”.

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