Sunday, April 15, 2007

Canto de Nana


AÇÃO DE GRAÇAS
Por Nana de Freitas

Rezava sempre de pernas abertas. Por isso não ia à igreja há cinco anos. A família, patriarcal e tirana - como permite a lei social que seja qualquer uma que viva nos grotões daquelas terras -, impôs violência física, testou castigos e rogou pragas, a fim de arrastar a moça ao menos às celebrações da Paixão. Mas, firme como uma rocha, ela aceitou cada chaga sem se curvar à vontade do pai – embora ao Pai, o outro, garantisse render preces longas e freqüentes. E assim o fazia, sempre trancada e com as pernas abertas.

Manhã de domingo chuvosa e a missa das 7 soltava gente pelo ladrão, quando a moça, ainda menina, roçando na saia a vela com que pediria a cura do pai - convalescente de mal desconhecido -, testemunhou o que chamou de milagre. As quenturas lhe cobriram o corpo, os peitos malformados se enrijeceram e pensou até ter deixado escapar um suspiro, de dor ou algo que lhe valesse.

O transe coletivo do culto a salvou da censura das velhas, mas as pernas ainda tremiam no ajoelhar da eucaristia, um tanto úmidas, um tanto bambas. Ainda na igreja, acendeu a tal vela. Em casa, o pai esperava de pé, barba feita, faces coradas e um sorriso que não se via desde fevereiro.



Era abril quando Santinha descobriu sua singular maneira de fazer as preces. Desde então, sentia-se como quem carregava entre as pernas a sorte de toda a família. E rezava por ela com crescente fervor, em recinto fechado, sem companhia, acendendo sempre a vela em seguida.
Foi assim quando o irmão, Antônio, caiu do cavalo. E também quando o primo Firmino foi picado por cobra no pasto. A cada nova tragédia, a família corria à igreja e Santinha se trancava no quarto. Por se recusar a acompanhá-los ao culto, amargou até jejum de três dias, forçado pelo pai, em castigo. Não se importava. O jejum e a correia só faziam aumentar o vigor de suas preces e a determinação de manter em segredo seus dotes de beata.

A prole numerosa dos pais e os infortúnios da vida na roça lhe garantiam motivo quase diário às orações. Santinha, secretamente, se orgulhava em ver a família crescer livre das chagas do barbeiro, do impaludismo e dos agudos defluxos que chegavam a cada inverno.

Naquele domingo, entretanto, a família já seguia rumo à igreja quando Santinha - trancada no quarto, sem a roupa de baixo e com a vela em punho – percebeu que estavam todos bem. Nenhum acidente, doença ou desgraça se abatia sobre a casa. Até as brigas cessaram, com a madureza chegando aos mais novos. A comida era farta, a saúde era boa e nada lhe ocorria ali, já com a vela entre as pernas, que carecesse de sua intervenção.

Ainda secando no rosto as lágrimas que derramou ao perceber sua fé sem serventia, Santinha acendeu a vela. Lambeu o pranto no canto esquerdo da boca, arrumou o desalinho dos cabelos e sorriu, feliz por aprender a maravilha de orar por simples gratidão.

PS: A imagem é "Susanna and the Elders", de Rembrandt, e pode ser encontrada no site
www.rembrandtpainting.net

5 comments:

DM said...

que, enfim, máscaras de uma certa religião foram arrancadas, mesmo sendo no universo da literatura. Despida e saltitante, ela se tornou mais leve. Automaticamente, deixou pelo caminho suor pingante de hipocrisia. E o desfecho? Uma guloseima para repor energias. Adorei!

Anonymous said...

Como sempre, a Nana nos brinda com um texto de excelente qualidade literária e alta voltagem emocional. O fecho é primoroso.
Valeu, guria.

Anonymous said...

"Dotes de beata"...Repressão/libertação (mas que ótima escolha temática!) E o que dizer então do recurso expressivo "O transe coletivo do culto a salvou da censura das velhas, mas as pernas ainda tremiam no ajoelhar da eucaristia, um tanto úmidas, um tanto bambas"

Ah, é um texto excelente! Adorei!

Anonymous said...

A maldita culpa cristã, o mais antigo bigue bróder, a idéia do Deus que tudo vê, tudo sabe.
Texto redentor.
Beijo

Anonymous said...

Caríssimos Denise, Jens, Halem e Pirata... Nem sei explicar o espanto que me causam os elogios de vocês, numa boa. Uma alegria imensa que a "brincadeira" que me dá tanto prazer leve um pouquinho de luz aos dias de vocês. Puxa vida! Bom demais! Se, um dia, eu acreditar... acabo fazendo só isso, hein? Hehehe! Beijo grande!

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