Sunday, November 26, 2006

Canto de Nana




PAU QUE NASCE TORTO...
Por Nana de Freitas

Boca do Povo, de www.mariacartolina.com

Na porta da casa simples, na periferia de Nossa Senhora dos Ventos Curvos, a chegada da manhã revelava a fila que se formara há 78 dias. Antes disso, a linha de espera se recriava toda madrugada, a partir das horas em torno das quatro, mas dissipava-se ao cair da noite. Há mais de dois meses, no entanto, a fila era uma só. O atendimento parava, a fila continuava ali, crescendo em silêncio, como massa de pão, à espera de um novo raiar de sol.

Antônio Baltazar Barbosa do Prado tinha virado notícia no jornal da capital, em edição publicada 79 antes desta alvorada, em reportagem das grandes que até o padre de Ventos Curvos já chamava de “estopim da peregrinação”. Aos 91 anos, com experiência que somava dois casamentos, 14 ocorrências públicas de infidelidade, mais um caso de 20 anos com a viúva do padeiro – 16 filhos, 37 netos e sete bisnetos vivos –, seu Baltazar virou “santo”.

Andava com dificuldade e só comia papas, pois o dente que lhe restava se fora há quatro anos, na tentação de um pé-de-moleque, em noite de São João. Pouco sobrava naquele homem que desse pistas do caixeiro-viajante que fez a vida na arte de encantar – clientes e mulheres – com as palavras.

Aos seus, dirigia apenas vocábulos estratégicos. “Fome”, “sede”, “frio” e afins. Corria à boca pequena que o silêncio do velho vinha da mágoa de saber que a neta se emprenhou de um tal boto que escorregou do Amazonas e foi dar num córrego que banhava a cidade. Baltazar, no entanto, evitava colóquios por motivo menor. Sem quê nem para quê, simplesmente não conseguia se lembrar de um nome que fosse vivo na casa. Isso, três anos atrás. Hoje, sequer se lembrava que havia esquecido.

Acontece que, nessas coisas da vida, Seu Baltazar, que já não sabia de si quem era, trazia na ponta da língua cada ditado popular que ouvira nas andanças pelas Minas Gerais. E danava a declamá-los, um atrás do outro, a quem quer que lhe desse ouvidos e não fosse parente.

Arrumado para o banho de sol em cadeira na calçada, recebeu, numa terça-feira, o sorriso da moça triste que passava rumo ao armazém. “Água e conselho só se dá a quem pede”, disparou o velho, estancando o passo da moça. Certo da atenção que recebia, emendou: “Casamento se desmancha até na porta da igreja”. Emocionada, a jovem se encheu de ânimo e estreou um andar resoluto, enquanto ainda ouvia, ao fundo: “Marido velho e mulher nova, ou corno ou cova”.

Antes de raiar a quarta-feira, a notícia se espalhou na cidade. A filha de Maristela fugiu com Deco de Dona Júlia e deixou a ver navios o coronel Feliciano, a quem era prometida desde debutante. Antes, escreveu aos pais um bilhete. “Seu Baltazar me abriu os olhos para a vida. Folhinha e noivado só prestam por um ano”. Era o primeiro “milagre” do velho.

Daí em diante, começaram as visitas. Seu Baltazar nem mais ficava ao passeio, devido ao tumulto. Olhos fitando o nada, dava constante seqüência à fila, com o limite – controlado pelos parentes – de três provérbios de bônus e R$ 2 de ônus a quem o consultasse. Gente que entrava sorrindo saía chorando, e vice-versa. E atribuíram a Baltazar previsões dos quatro cantos do mundo. “Quem de moço não morre, de velho não escapa”, teria dito o matuto, prevendo a morte do papa. Em clara referência a Fidel, o ancião vaticinara: “Desgraça de velho é 3Q: queda, ‘qatarro’ e ‘qaganeira’”.

O título de padrinho dos gays, Baltazar ganhou em consulta de ator famoso. “Lé com lê; cré com cré”, decretou. E emendou com um recado claro à modelo estreante em novelas: “Antes a feia de barriga cheia do que a bonita que de fome grita”.

Ao presidente, atendido em esquema especial, o velho teria advertido, ameaçado e aconselhado, em três etapas sem pausa. “Cutia ficou sem rabo de tanto fazer favor. Cria um corvo, que ele te arrancará um olho. O pior cego é aquele que não quer ver.” Uma semana depois, a profecia de Seu Baltazar ganhava sentido nas bancas de jornais.

Sol a pino no céu , fila longa, a bailarina baiana causou furor na chegada. Short e top colados ao corpo, vinha junto com o namorado cantor. “Na cauda é que está o veneno”, suspirou Seu Baltazar, com ambígua lucidez. “Onde come um, comem dois”, arriscou o velho, sem obter resposta. “Santo de casa não faz milagre”, despediu-se e morreu, vislumbrando o paraíso.
Contemplando a própria morte, já um terceiro na cena, Baltazar ria de si ao lembrar o que sabia: ”Quando Deus dá a farinha, o diabo esconde o saco”.

4 comments:

Roy Frenkiel said...

Um dos melhores contos curtos que ja li em minha vida!

Parabens Nana!

Beijux

RF

Anonymous said...

Adorei todos os seus contos! Menina,você ainda vai looonge! BRILHOU!

Anonymous said...

Nana parabéns!!!
Muito, muito bom mesmo! Adorei!
Clap!Clap! Clap!
Um grande abraço.

Anonymous said...

"quem conta um conto, aumenta um ponto". nota 10

Convite ao Nosso Yahoo Grupo! Participe e debata!

Povo do Reação Cultural, Agora com uma gestão modernizada e o uso da mais alta tecnologia, contamos com um grupo de discussão pela internet. Pelo grupo, além de receber as tradicionais edições do Reação Cultural, o internauta também poderá debater melhor algumas questões, além de conhecer novos contatos. Para se cadastrarem, basta enviar um e-mail em branco para reacao_cultural-subscribe@yahoogrupos.com.br e faça parte do nosso grupo. Atenciosamente. Reação Cultural Editores

Os Imperdiveis!
Leia o Monblaat!
Maiores detalhes, escreva ao Fritz Utzeri

flordolavradio@uol.com.br

Leia a Zine do Pirata!
Para receber por email, escreva ao Pirata

diariopz@uaivip.com.br

Visite seu blog acessando a:

www.zinedopirata.blogspot.com


Leia O Lobo (Fausto Wolff)

www.olobo.net