Wednesday, June 13, 2007

Aristóteles da Silva em Devaneios



Desde criança, um sonho me acompanha. Outros tantos se repetem, mas um é velho conhecido meu.

Vejo a imagem de um homem. Ele está bem perto de mim, dando-me as costas. Ele não fala, mas sei que quer me dizer algo. Aproximo-me e contorno.

Quando finalmente se vira, o homem não tem face. Sem olhos, nariz, boca e orelhas. Nada. Todo o rosto é apenas pele, sem nem mesmo alguns traços. Nem cicatrizes ou sinais da idade. Só pele.

O sonho é só isso.

Acabo acordando incomodado com a imagem. Um tanto perturbadora a figura que me convida a um susto. Apiedo-me do estranho sem rosto e ganho novo sono.

Não me dou a interpretar sonhos. Deixo a cargo de pessoas muito mais competentes para tanto.

No entanto, disponho-me a refletir sobre nosso papel. Nosso papel em casa, no trabalho, na rua... Vejo-me no trem que liga o ABC Paulista ao antigo centro de São Paulo. Somos tantos milhões. Em que meu papel na sociedade pode trazer mudanças?

Qual benefício ou malefício que proporciono? Nossa atuação tem efeitos tão difusos... Como estou colaborando pelo bem dos outros? Como posso fazer tudo valer a pena? Como atenuar, senão mesmo extinguir, as mazelas de um sistema econômico injusto e que expropria a vida dos trabalhadores? Um sistema que desumaniza, gera anônimos Severinos (com a licença de João Cabral de Mello Neto) e cria homens e mulheres sem rosto...

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2 comments:

Meneau (o insuportável) said...

Ué, já que você citou J. B. de Melo Neto, vou aproveitar a deixa:

"Todos os atentados/eram longe de minha rua./nem mesmo pelo telefone me jogavam uma bomba."

Esses versos são do Poema Deserto, do primeiro livro do poeta, Pedra do Sono. E o que tem a ver com seu texto?

Para acabar "com um sistema que desumaniza" e enxergar o rosto das pessoas e preciso estar junto delas em primeiro lugar, aceitar os riscos do desentendimento e enfrentamento (conhece aquele poema do Mário Quintana, Exame de consciência: "Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?"), ir à luta, fazer uma coisa que já se chamou revolução, e é da sua essência ser sempre violenta, mas hoje soa mesmo fora de moda.

Eu mesmo prefiro ficar quietinho aqui na minha rua, onde ninguém joga bomba e olhar pela alta janela do apartamento (pobre, mas que todas as prestaçõs eu paguei direitinho) aquele monte de gente (sem rosto, obviamente) passando lá embaixo. É, acho que vou tomar mais outra cerveja...

Meneau (o insuportável) said...

Ah, e onde escrevi J. B. de Melo Neto quis, evidentemente, escrever J. C. de Melo Neto

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