Thursday, March 01, 2007

Me Beija - Silvio Vasconcelos

Easy rider de uma vida que não é minha, quero o adeus falso aos amores vendidos! Vou abandonar de vez meus destinos estabelecidos para encontrar repouso de minha alma errante. Vou subir no mais alto dos prédios ou na ponte que mais longe do rio alcance! Nem com toda essa chuva que me arde os ossos quero desistir de fugir gelado, encharcado de meus sentimentos doloridos! Chega, chega! Chega de gritar sozinho por essa janela como um náufrago em surto de desespero numa ilha infestada de seres transparentes que inundam a madrugada! Vou sair daqui agora e não volto mais! Pode ser o trem que invade a noite, vazio e rápido! Pode ser a morte triste do viaduto contra o caminhão que se aproxima! Ou talvez mais fácil seja o torpor do veneno me amortecendo a queda ao chão depois de uma dose mal dosada de desespero! Não, não vou me submeter ao sol, não vou deixar que meus olhos brilhem uma vez mais ao raiar do dia! Terei nojo dos que me olharem lá embaixo e me pedirem que salte para eles, nesse deleite fugaz das massas! Vou me entorpecer numa rave em alta rotação ao gosto de ecstase com Smirnoff Ice! Juro, juro que faço isso tudo numa noite só e volto amanhã e depois de amanhã e depois de depois de depois de amanhã, só para ver seu coração encolher-se até secar por ter negado meu beijo!
- Que cantada triste...
- Quis ser diferente, não triste.
- Foi triste, mas foi diferente.
- Ah, bom! E aí, me beija?
- Não, vou esperar prá ver.
- Não acredita que eu possa fazer tudo isso?
- Cara, conheci você agora!
- E se eu dissesse que já lhe conhecia, só que nunca lhe encontrava?
- Como assim?
- Vaguei dos desertos de Atacama até as montanhas do Tibete descalço e despossuído de amor; virei páginas infindáveis de velhos livros esquecidos em porões de navios fantasmas; percorri margens de rios em curvas longínquas da Amazônia, desde o Peru até Marajó; desci corredeiras no Alasca e naufraguei na costa da Florida, em 1532, para depois percorrer nu as terras selvagens do golfo até o planalto sagrado do México pré-colombiano; congelei nas geleiras dos Urais para ser reencontrado por um velho pesquisador 30.000 anos depois; Derreti de dor ao ver meus filhos mortos aos pés do Vesúvio em Pompéia, dois dias depois de enfrentar os leões em arena sangrenta de Roma. Não vi limites terrenos atrás de alguém para amar por uma noite e encontrar sorrindo na manhã seguinte.
- Nossa, você insiste mesmo.
- Me beija...
- De que serviria um beijo numa busca agonizante como a sua?
- Encanto.
- Viveu também as histórias das fadas?
- Ainda não encontrei minha fada, que dirá minha princesa.
- Agora ficou piegas.
- Amor é piegas.
- Olha, você até que tem um charme de desespero, mas prefiro a mágica de um instante que me desperte... Acho que eu já estou falando demais...
- Não, me fala mais disso.
- Sei lá, eu espero alguém além do beijo fácil, da cantada contundente, do poema batido.
- Desenvolva.
- Você é esperto. Começou com uma conversa de homicida e já me faz falar de meus presságios de adolescente.
- Continua.
- Virei noites em livros e músicas que falavam de um amor irreal que me surgiria na esquina e me arrebataria de uma vez; ainda hoje quando saio a noite tenho a impressão que alguém me procura e olho atrás e não encontro quem me seduza os olhos ou que me conduza aos sonhos. Mesmo assim procuro estar pronta para um encontro indeterminado. Aí você chega...
- Sim, cheguei.
- Me beija...

3 comments:

Esther said...

Amei o texto. Parabéns.

Anonymous said...

Marisinha - minha musa, meu bem, meu mal - adorou a crônica, caro Silvio. Para minha inveja, disse que dá o beijo e algo mais, se você quiser...
***
PS: Estou pensando em apropriar-me do seu texto e usá-lo para tentar conquistar a vizinha do andar de baixo. Pode ser?

Anonymous said...

Devo dizer que essa tem sido a seção que mais tenho apreciado por aqui. Parabéns.

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