Geraldo Magela - A nossa segunda fome
A nossa segunda fome
Geraldo Magela
Leonardo acorda em gritos por toda a casa:
Mãe! Mãe! Estou com fome, o que teremos de café?
Eu quero Drummond a Alighieri; Antônio Sharmeta com cobertura de Samir, Beremís, pois hoje, no colégio, tenho prova de matemática.
Não! Não! Argumenta a mãe em brandos:
É muito cedo para doces e guloseimas. O que você necessita é de um café nutriente e protéico, de Conan Doyle a Ariano Suassuna, com pitadas de Nelson Rodrigues, biscoitos Meireles, com fatias finas de Tolkien, um copo de Vasconcelos; com pouco açúcar, mais muito Fernando Suassuna.
Já preparei o lanche pro recreio, sanduíche de Camões, uma garrafa de Rubem Alves, brigadeiros exuperyanos, provindos do B612; mas mesmo assim, com cobertura de Alexandre Dumas, o pai, pois do filho, esperamos apenas "A dama das camélias" e, nada mais.
No almoço, uma comida apimentada para dias frios, Borges a Schopenhauer, Victor Hugo soltinho, um Bocage acebolado. De sobremesa, pudim de Homero, musse de Cervantes. Teremos sucos naturais, cortesia do Recanto de Afrodite. Lobato com Monteiro, Azevedo com Assis de Cavalcante; ou melhor, Aluísio de Machado; muitas são as opções, Antunes Filho para todos os gostos e paladares. Culinária árabe de primeira qualidade, Malba ao molho Paiva, Tahan a vinho Rubéns, "Maktub" com conservas Marcelianas de um "Feliz ano velho".
No lanche da tarde, uma comida com ares tropicais; fatias de Rubem Braga, suco de Júlio Verne. Um achocolatado do Jorge que tanto amamos, pois o Amado se foi; deixando a Bahia mais triste, o mundo mais pobre e o céu mais alegre; em festa, nas batidas das caixas ressonantes e tambores mágicos de mãe Menininha e do velho Pastinha, ao ocupar um lugar de destaque na avenida das letras.
Forte e imponente, discreto como um xamã, lá estará sambando e cantando, ou melhor, deliberando, criando romances à moda antiga, com nomes memoráveis da nossa galeria gastronômica como o poetinha Vinicius, Mário Bilac, Olavo de Andrade; Manuel Aranha, Graça Bandeira; numa "Canaã" sentimental, que mais nos parece "Ouvir estrelas pra perder o senso", coisa de Cartola ou Noel Rosa. Lá estarão todos, de tintas e cordas na mão; penas e viola, que violam o que melhor fizeram. Arquitetos de sonhos, escultores do vento, construtores do inimaginável, feiticeiros da palavra; levaram no seu ser a mais difícil das missões, dar sentido às vidas severinas do Brasil.
Semeadores da esperança, românticos da prosa, boêmios, operários da construção do real, deuses de carne e osso; fingidores na mais pura essência da palavra que, como a vasta Pessoa de Fernando, num jogo dualístico de bem e mal, concretizaram do abstrato um encontro pós-moderno de seus muitos egos.
No jantar, um cardápio suculento. Nada de exageros numa hora tão imprópria. Gonzaga Medeiros ou José Saramado? Na dúvida, Ziraldo desce bem; Jô Soares prato certo, Sharon Lebell também. Um caldo de Buarque só pra caetanear. Pras noites de frio, recomendo, à beira da lareira, Érico Veríssimo à brasileira, seguindo sempre as prescrições dos grandes chefes da culinária mundial:
O amante oferece seu corpo para ser comido, como o objetivo de deleito. O escritor, à semelhança dos amantes, também oferece seu corpo ao outro, com o objetivo de prazer. Só que sob a forma de palavras. Um encontro antropofágico de letras. Então; nada de comidas indigestas para o horário, pois queremos uma noite agradável e sem pesadelos.
Post scriptum culinário
À noite, após o banho, e já aconchegada no ninho amoroso, a mãe comenta com o marido:
Alfredo! Estou preocupada com o Leozinho (para Silviano Santiago, o atual contexto literário seria bem representado por um leão com carneiros assimilados), ele tem se alimentado tão mal ultimamente. Deveríamos levá-lo ao nutricionista.
Que nada, querida. Isso é coisa de criança, da idade. Já, já passa.
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2 comments:
Porra, um cara que escreve tão bem como o Marconi Leal. Isto aqui está ficando bom.
Bacana... nossa .... ficou excelente!!! Já to divulgando pra ver se aumenta essa segunda fome nas pessoas!
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