Tuesday, October 03, 2006

Canto de Nana

O ÚLTIMO COMÍCIO
Por Nana de Freitas



O último comício tinha terminado e agora era escapar da multidão o mais rápido possível - sorridente, sempre sorridente, claro - e ir pra casa tomar um porre. Um copo? Não, um porre mesmo, daqueles de terminar soluçando as mágoas passadas abraçado ao Deca - não o Deca da Ritinha, amigo dos tempos de pelada na várzea, mas Deca mesmo, marca registrada, louça de banheiro.

Enquanto não atingia a glória de vestir apenas meias e cuecas absurdamente embriagado, esforçava-se para vencer o “povão” com as banhas adquiridas ao longo dos 40 anos na política. “Se tivesse chegado aqui ainda jovem, sem essa pança que nem vi crescer, já estaria em casa”, pensava, enquanto distribuía sorrisos, beijos e apertos de mão pelo caminho.
“Lysol”, ouvia aos sussurros no fundo da mente. Era recorrente. Tinha vergonha daquele pensamento, mas não conseguia mais se livrar dele desde que alcançou o sonho de assinar a TV a cabo. A primeira semana foi, providencialmente, de férias e o controle remoto da operadora nunca teria imaginado trabalhar tanto. Numa das zapeadas, parou no Discovery Channel - “Discovery Channel” repetiu sozinho várias vezes, achando bacana lembrar o nome para contar aos amigos na sinuca de sexta. O programa falava sobre microorganismos que causavam doenças e sua comum presença nas mãos em maior número até que em vasos sanitários regularmente higienizados. No intervalo comercial - nada o convencia de que aquilo não tinha sido proposital -, Lysol, o tal spray para jogar no chão, na privada e em tudo mais que causasse engulhos, a fim de que o bebê pudesse engatinhar livremente pela casa, a salvo das ameaçadoras bactérias produzidas em animação.

Não precisou de mais nada para que ele deixasse a poltrona, sentindo as vísceras em pandarecos, e corresse ao banheiro para dissolver metade do Lux branco na insistente lavagem das mãos. Voltou à poltrona rindo de si mesmo, mas a consciência da neurose recém-adquirida não lhe suavizou a alma, tampouco lhe privou do hábito, inicialmente diário, de higienizar-se à exaustão, da ponta do dedo médio até o nó dos cotovelos.

Deixava o lavabo feliz, mãos limpas em toda conotação que isso podia representar. Curiosamente, com a carreira política se consolidando no mesmo período, foi aí que, de fato, começou a sujá-las, tanto na caça aos votos - literalmente, se esfregando com freqüência às bactérias do amigo eleitor - quanto na caça às verbas - se sentindo, ele próprio, bactéria a tecer conchavos em mãos alheias.

“Lysol”, pensou de novo quando o idoso enrugado e maltrapilho conseguiu arrancar-lhe o último aperto de mão da noite. Quando o hábito da obsessiva limpeza passou a se repetir por quatro, cinco vezes ao dia, uns três anos depois de assistir ao Discovery Channel, foi que a voz do intervalo comercial lhe gritou à mente: “Lysol”. Desde então, o borrifador sanitário se tornou companhia constante. Disfarçado pela patroa em discretos recipientes, o milagre que livrava o bebê dos monstros invisíveis garantiria sua ascensão política, seria sua verdadeira “imunidade parlamentar”.

Entrou no carro, sacou o aerosol ao estilo John Wayne - como gostava de fazer quando ninguém o via - e se deliciou com o assassinato dos milhões, bilhões, trilhões, talvez, de seres microscópicos que acabara de adquirir no último corpo-a-corpo antes do pleito. Sentia-se invencível, intocável, incontaminável. “Incontaminável”, repetiu alto, atravessando uma sonora gargalhada que veio junto com a lembrança das últimas pesquisas de intenção de voto.
“Falou comigo, presidente?” A voz do motorista foi a última coisa que ouviu. O “Incontaminável” gargalhado alto contaminou a atenção do Oswaldo. Preocupado em atender o presidente, ignorou a placa que ordenava a parada no cruzamento.

As equipes de resgate chegaram em sete minutos. Sete minutos contatos no relógio de Oswaldo, que, além do susto, nada sofreu. O presidente, por sua vez, não respirava. E Oswaldo tentava lembrar quanto tempo uma pessoa podia ficar viva sem respirar, puxando pela memória uma antiga conversa com a filha enfermeira. “Dois ou dez minutos?”, se perguntava enquanto vigiava o relógio. O médico da ambulância constatou o que os curiosos que se amontoavam no local já sabiam. “Morreu o presidente”, disparou em onda a notícia. Primeiro como um telefone sem fio de tremendas proporções, cada curioso avisando ao outro, e ao outro. Buxixo em andamento crescente, de andante a allegro maestoso, na medida em que avançou na multidão.
“’Bolero de Ravel’, foi o que ele disse antes do acidente. Ria muito e gritava ‘Bolero de Ravel’”, afirmou Oswaldo à primeira equipe de reportagem que conseguiu entrevistá-lo, reproduzindo exatamente como lhe soou o mix de “incontaminável” com as gargalhadas roucas do presidente. Quarenta segundos depois da fala de Oswaldo irromper via satélite, emissoras de rádio e TV já reproduziam o bolero, em back ground, como uma espécie de “Tema da Vitória”.
Dia cinzento, o país foi às urnas em luto. A vitória era certa. O futuro, nem tanto. Enquanto ouvia conhecidos e desconhecidos citando casos agora históricos do presidente, a viúva botava fora, na pia, o conteúdo dos recipientes com aerosol preparados para aquele dia. Ao fundo, o insistente e majestoso Ravel. “E o filho da puta me garantiu que gostava mesmo era de pagode”, pensava ela, aos prantos, carcomida pela descoberta da última e definitiva traição do marido. “Agora vou ter de ouvir essa merda até o fim dos meus dias!”

1 comment:

Anonymous said...

Valeu demais, capitão... Vamos batendo a poeira e reaprendendo a escrever coisas para as quais não precisamos de Lysol pra ler, né?
Besito!

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