Coluna do Jens
A noite do lobisomem
Por Jose Edi Nunes, O Jens
“...e é por isso que eu gosto lá de fora
porque sei que a falsidade não vigora”
(Felicidade, de Lupicinio Rodrigues)
Esta história quem contou foi meu avô há muito tempo atrás. Eu e minha irmã escutamos com os ouvidos atentos e os olhos esbugalhados. Agora, repasso ao leitor. Acredite se quiser.
Corriam os anos 20 do século passado quando mudou-se para uma fazendola em Viamão (cidade na região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul) um homem de poucas palavras, acompanhado da mulher e dois filhos. Logo após este fato, estranhos acontecimentos abalaram a tranqüilidade da pacata comunidade: nos dias seguintes às noites de lua cheia, os currais, chiqueiros e galinheiros das propriedades vizinhas amanheciam povoados de cadáveres de bezerros, porcos e galinhas estraçalhadas. Nessas noites também os cachorros apresentavam uma inquietação inusitada, latindo e rosnando até o nascer do dia. Logo surgiram relatos de que um grande lobo-guará, ou um enorme cachorro negro, andava pelas redondezas matando os animais.
Os mais velhos, conhecedores dos mistérios do mundo, suspeitavam tratar-se de outro ser – um temível e sanguinário lobisomem. Igualmente alimentavam a desconfiança de que quem encarnava a terrível criatura nas noites de lua cheia era o recém chegado de poucas palavras. Naquele tempo e entre aquela gente não era costume lançar acusações assim tão graves sem a cabal comprovação. Assim, formou-se uma comissão de notáveis da região, encarregada de descobrir a verdade dos fatos e colocar um fim ao morticínio que já abalava os alicerces da economia da pequena cidade. Decidiu-se armar uma tocaia para pegar o bicho.
Na próxima lua cheia após a reunião, cinco homens, entre os mais fortes do local, esconderam-se nas proximidades do taquaral que ficava nos fundos da casa do homem de poucas palavras. Dali viram quando ele saiu, por volta da meia-noite, e foi completamente despido ao fundo do pátio. Lá, protegido pelas taquareiras, começou a rolar-se no chão furiosamente, enquanto rosnava e resfolegava. Assombrados, os homens viram quando ele ergueu-se não mais na forma humana, mas na pele de um grande e horrendo lobo que saiu uivando em direção ao chiqueiro mais próximo. Recuperados, os homens foram atrás, munidos de facões de desbravar mato. Um deles tomou outro rumo – foi em busca dos cães, que já haviam percebido a presença da perversa figura e latiam alucinados.
Quando alcançaram o nefando transformo, o mesmo encontrava-se com os longos e afiados dentes cravados no lombo de um agonizante, apetitoso e esperneante leitão. Enfurecido pela interrupção, voltou-se contra seus agressores.
Foi uma batalha freroz. Os homens urravam e desferiam vigorosos faconaços, os cães latiam, rosnavam e atacavam, os porcos guinchavam apavorados. O lobisomem, com os dentes arreganhados, de pé como um homem, desferia golpes com as patas dianteiras. Parecia estar em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo.
A luta durou até quase a aurora, quando o monstro, pressentindo a chegada do sol, escafedeu-se para seu esconderijo.
Aterrorizados, os homens viram o cenário da carnificina: cães e porcos jaziam partidos aos pedaços, sabe-se se lá pelos facões ou pelas garras da criatura – também eles, os homens, ostentavam as marcas da batalha nos braços e nas pernas cortadas e manchadas de sangue.
Atordoados, foram ao boteco da vila levar as notícias aos seus iguais e beber aguardente na vã tentativa de acalmar os nervos. E foi ali, entre o relato de um e de outro, que viram passar uma carroça rumando para a capital . Sentados à frente, ao lado de um peão, iam a mulher e o filho do homem de poucas palavras. Atrás, tapado por um cobertor, ia o doente. A mulher e o guri permaneceram quietos, foi o peão quem respondeu, quando indagado sobre quem era o enfermo. O patrão sofrera um grave acidente na lida da fazenda. Tombo feio. Estava todo lanhado, precisando de cuidados médicos urgentes no hospital de Porto Alegrel. Os homens desejaram melhoras, fizeram o sinal da cruz, beberam aguardante e cuspiram no chão. Êta mundo velho sem porteira.
Essa era a história que meu avô contava a mim e a minha irmã no cair da noite em Ipanema. Quando perguntávamos se ele era um dos homens que enfrentaram o lobisomem, limitava-se a sorrir e nos propor um desafio: pagava 100 cruzeiros (uma fortuna) para aquele que fosse até a centenária figueira, no campinho perto de casa, e gritasse três vezes: lobisomem vem me pegar!
O desafio nunca foi aceito.
E você leitor, acredita em lobisomem? Eu não, ao menos de dia. Já à noite...
José Edi Nunes, o Jens
2 comments:
Jens, estou pasma até agora. Nunca na minha vida acreditei nessa história e agora você me conta essa. Não tenho a menor idéia se existe ou não lobisomem. Você acha que isso é coisa do seu avô ou sentia que ele falava a verdade?
Ótima estória, Jens. Aqui em Belo Horizonte, penso no lobisomen normalmente uma vez por mês, quando volto do trabalho, dirigindo na madrugada. Subindo a Avenida Nossa Senhora do Carmo, que vai dar na 040, que, por sua vez, leva ao Rio de Janeiro, a visão da lua cheia é tão atordoante que, às vezes, torço pela existência de tal criatura. Assim sendo, pelo menos, compensaria em parte os milhares de humanos que vivem a noite alheios àquele espetáculo. Alguém, afinal, deveria prestar à lua cheia um tributo de grandeza equivalente, não acha? Ainda que fosse em se transformando em algo que não fosse humano... Por outro lado, quantos de nós não se transformam, vez ou outra, independentemente da lua que vai no céu, não é verdade? rs
Um abraço.
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