O Povo e o Livro
Antes do tiro: a violência espectral de Rubem Fonseca
Por Halem de Souza
(Foto: Sexual Violence, clique aqui)
Silviano Santiago observou que “Rubem Fonseca exibe a violência como o modelo de comportamento dominante na sociedade contemporânea”. E acrescenta: “quando a Sociologia, História e Psicanálise tornam-se disciplinas pusilânimes para analisar esse fato, a literatura se agiganta e se faz indispensável.”
Nenhum leitor de Fonseca tem a menor dificuldade em se aperceber da violência característica do autor de A Grande Arte. Ela já se manifestara no primeiro livro de contos (Os prisioneiros, 1963), começara a consolidar-se a partir do terceiro (Lúcia MacCartney, 1967), notadamente nos contos O caso de F. A. - com o famoso personagem Paulo Mendes/ Mandrake – Meu interlocutor e Relato de ocorrência, por exemplo. Mas é em Feliz Ano Novo (1975) que a ficção de Rubem Fonseca adotaria a violência como temática recorrente.
Seria bastante simples arrolar exemplos de episódios de brutalidade e selvageria em algumas narrativas do livro, nas quais esses elementos estão explícitos. Passeio noturno (Partes I e II), Botando pra quebrar, Dia dos Namorados (mais uma vez com o personagem Mandrake) e, obviamente, o conto que dá nome ao livro, possuem farto material ilustrativo do tratamento dado pelo autor à violência.
Mas, e nos contos em que a selvageria e a estupidificação, inerentes a todo ato violento, não estão imediatamente reconhecíveis, nem podem ser prontamente identificadas por vocabulário direto e sem subterfúgios? Em outras palavras, como Fonseca trata a violência antes de anunciar que houve um tiro, uma facada, um soco?
Em um conto de Feliz Ano Novo, a violência também lá está, mas de modo espectral, assombrando a narrativa, sem, contudo, ocupar o proscênio, guardando-se para o epílogo. E essa narrativa destaca-se por impor, como fratura ainda não exposta, a razão da imensa maioria dos atos brutos e violentos: as diferenças de renda ou, como prefiro dizer sem chorumelas, o dinheiro que uns (pouquíssimos) têm e outros (milhares) nunca viram (ou verão) sequer a cor.
O outro, conto pouco característico de Fonseca, porque flerta ligeiramente com o gênero fantástico, opõe dois personagens: um empresário rico e “um outro”, provavelmente um mendigo comum. O primeiro atende aos pedidos do segundo, assim caracterizado por aquele: “Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos.” Ao longo do conto os dois se encontram e os pedidos do mendigo vão ficando mais exigentes e ousados, intimidando o homem rico. É importante notar que, habilmente, Fonseca faz do empresário o narrador; isso significa que vemos apenas aquilo que ele deseja que saibamos. Exasperado pela insistência do pedinte, mata-o com um tiro e então percebe: “ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder.”
Se há um remate moral para esse conto é o de que o abismo social entre classes transforma os detentores da renda cegos às necessidades dos outros setores da sociedade. Não à toa, ao invés de diminuírem suas margens de lucro, exigem a construção de mais cadeias, contratam seguranças, eletrificam seus muros. Aproximar-se do outro, pobre, sem oportunidade de educação, desocupado e desesperado, pra essa gente endinheirada, nem pensar.
P.S. Os contos aqui citados estão em FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Halem de Souza escreve o blogue Ração (Razão) das Letras, vale a pena conferir!
Por Halem de Souza
(Foto: Sexual Violence, clique aqui)
Silviano Santiago observou que “Rubem Fonseca exibe a violência como o modelo de comportamento dominante na sociedade contemporânea”. E acrescenta: “quando a Sociologia, História e Psicanálise tornam-se disciplinas pusilânimes para analisar esse fato, a literatura se agiganta e se faz indispensável.”
Nenhum leitor de Fonseca tem a menor dificuldade em se aperceber da violência característica do autor de A Grande Arte. Ela já se manifestara no primeiro livro de contos (Os prisioneiros, 1963), começara a consolidar-se a partir do terceiro (Lúcia MacCartney, 1967), notadamente nos contos O caso de F. A. - com o famoso personagem Paulo Mendes/ Mandrake – Meu interlocutor e Relato de ocorrência, por exemplo. Mas é em Feliz Ano Novo (1975) que a ficção de Rubem Fonseca adotaria a violência como temática recorrente.
Seria bastante simples arrolar exemplos de episódios de brutalidade e selvageria em algumas narrativas do livro, nas quais esses elementos estão explícitos. Passeio noturno (Partes I e II), Botando pra quebrar, Dia dos Namorados (mais uma vez com o personagem Mandrake) e, obviamente, o conto que dá nome ao livro, possuem farto material ilustrativo do tratamento dado pelo autor à violência.
Mas, e nos contos em que a selvageria e a estupidificação, inerentes a todo ato violento, não estão imediatamente reconhecíveis, nem podem ser prontamente identificadas por vocabulário direto e sem subterfúgios? Em outras palavras, como Fonseca trata a violência antes de anunciar que houve um tiro, uma facada, um soco?
Em um conto de Feliz Ano Novo, a violência também lá está, mas de modo espectral, assombrando a narrativa, sem, contudo, ocupar o proscênio, guardando-se para o epílogo. E essa narrativa destaca-se por impor, como fratura ainda não exposta, a razão da imensa maioria dos atos brutos e violentos: as diferenças de renda ou, como prefiro dizer sem chorumelas, o dinheiro que uns (pouquíssimos) têm e outros (milhares) nunca viram (ou verão) sequer a cor.
O outro, conto pouco característico de Fonseca, porque flerta ligeiramente com o gênero fantástico, opõe dois personagens: um empresário rico e “um outro”, provavelmente um mendigo comum. O primeiro atende aos pedidos do segundo, assim caracterizado por aquele: “Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos.” Ao longo do conto os dois se encontram e os pedidos do mendigo vão ficando mais exigentes e ousados, intimidando o homem rico. É importante notar que, habilmente, Fonseca faz do empresário o narrador; isso significa que vemos apenas aquilo que ele deseja que saibamos. Exasperado pela insistência do pedinte, mata-o com um tiro e então percebe: “ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder.”
Se há um remate moral para esse conto é o de que o abismo social entre classes transforma os detentores da renda cegos às necessidades dos outros setores da sociedade. Não à toa, ao invés de diminuírem suas margens de lucro, exigem a construção de mais cadeias, contratam seguranças, eletrificam seus muros. Aproximar-se do outro, pobre, sem oportunidade de educação, desocupado e desesperado, pra essa gente endinheirada, nem pensar.
P.S. Os contos aqui citados estão em FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Halem de Souza escreve o blogue Ração (Razão) das Letras, vale a pena conferir!
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