Editorial Especial e Sombrio - Quinzena 11, 14-28 de Fevereiro
Tá todo mundo blém blém blém!
Alguém já ouviu essa expressão, mais facilmente encontrada saída da boca de meu tio? “Blém blém blém” não significa pancado, chapado, maluco, doido, esquizofrênico, ou qualquer outro distúrbio psicológico dos mais aos menos populares. Para um psiquiatra como meu tio, seria desrespeitoso chamar o doente mental de algo que ele não tem culpa nem escolha em ser. Quem tem escolha, quem pode com alguma dificuldade, mas pode ultrapassar seus próprios limites psíquicos e limitações pré-determinadas de sua infância, pode também evitar o ruído dos sinos imaginários que, geralmente, andam deixando muita gente surda.
No Brasil, o “blém blém blém” não é realidade exclusiva. Mundo afora, as pessoas estão cada vez mais doentes. Há alguns dias me pediram para analisar o mundo com um olhar mais positivo. Recuso-me, porém, a encontrar estúpidas positividades. E não vejo, exatamente, o que comemorar. Vejo, apenas, que o mundo precisa de um gigantesco psiquiatra, ou de bilhões de tamanho normal, mesmo. Está doente, e não falo do aquecimento global.
Pois se não, vejamos o conto de José Tavares, nome fictício, um trabalhador qualquer, casado com uma qualquer mulher, pai de quaisquer filhos. Trabalha doze horas diárias, sob a supervisão de um camarada chamado João, que por motivos também relacionados ao mesmo mal de José, o maltrata constantemente e se aproveita de sua insegurança. Faz com que José seja dois, três, quatro vezes José por minuto. Faz com que suas doze horas de trabalho se tornem vinte e quatro, porque José chega em casa e não consegue ser cem por cento José, pensando com tristeza calamitosa, que amanhã terá de estar por perto de João. E não é só João, são os chefes de João, e os clientes da empresa dos chefes de João, e os espinhos, e os cacos de vidro, e os assaltos, e as greves, e o cansaço extremo do dia a dia, de metade de cada dia, seis, sete vezes por semana doados ao trabalho por pão e água. No fim do mês, descobre que lhe faltará pão e água se quiser pagar o aluguel. Descobre que o que precisará para a cerveja, está comprometido com o sapato do filho. Inverte prioridades, mas naturalmente, nem toma as cervejas que gostaria, nem compra o sapato necessário para o filho. A boneca para a filha, então, nunca será comprada. Teriam de tirar do dinheiro para o arroz, e todo brasileiro sabe que comida sem arroz ou farinha não é comida. Neste esquema em que vive, José decide um belo dia, tomar mais cervejas do que em outros. Consegue saciar sua besta interna apenas quando a cerveja o adormece, e na ressaca do despertar no dia seguinte, volta ao trabalho. Antes, não encontrava tranquilidade em nenhum ponto de sua casa. Com a cerveja e a cachaça, agora acoplada à dieta diária, encontra alguma calmaria, e não seria estúpido em recusá-la. Passa a tomar mais cervejas e mais cachaças. Passa a regurgitá-las nas ressacas diárias... Sua esposa, um desses belos dias, o incomoda com alguma pergunta irrelevante. Incomoda seu descanso, e a cachaça lhe dá ânimos ao protesto. Protesta com muita veemência à interrupção de sua calmaria. Com veemência, bate na esposa, e de quebra, quebra alguns ossos dos filhos. É preso, e levado ao cárcere sem chance a apelos, pois, afinal, a justiça é apenas cega quando se torna daltônica. José, no caso, não é mais negro por já ser mulato. Após juízo, pega três anos de prisão. Prepara-se a quê, esse senhor José? À morte ou à regeneração? Mistério resolvido somente depois dos três anos. José volta para casa. Ainda desempregado, pensa apenas em descansar e re-aproveitar a perdida liberdade. Sabe, contudo, que precisa começar a trabalhar logo. Aprendeu uma quantidade incontável de ‘jeitinhos brasileiros’ na cadeia, e pensa em usá-los. Certo dia, é incomodado pela esposa, novamente. A mata. Vê que os filhos não podem sem mãe, e pensa com culpa no que os causou. Mata-os também. Percebe que agora se tornou um assassino da própria família. Não consegue viver com a culpa, e se mata. Final.
Fosse ele um menino de rua, sofreria tudo o que citei acima, mas sem emprego, e sem dinheiro para comprar cachaça ou cerveja. Sem João, mas com dezenas de Robsons e Almeidas, cabos e soldados da Polícia Militar. Fosse ele uma mulher, e não tivesse esposo, seria uma Maria, e roubaria a cachaça do patrão, a maquiagem da patroa. Sendo presidiário, o maltrato apenas acaba canalizado, centrado, intensificado, mas não novo. É disso que nascem as quadrilhas, e as quadrilhas são respeitadas pelo Poder Público, porque o público todo teme as quadrilhas.
José, se não matar seus filhos, há de educá-los. No entanto, com quais exemplos? À cachaça? O desespero? O sapato do filho? O incômodo da esposa? Como Washington, de dezesseis anos, saberá se comportar se apenas concebe fragmentos da paternidade que um dia o gerou, e tem feito apenas o contrário desde então? Não sei, pois, se saberá...
Claro que em meu linguajar popular, de uma pessoa que cresceu em países de linguas esquisitas, além do Português, talvez o leitor ou a leitora ainda não consiga enxergar uma realidade tão complexa refletida neste texto. Ainda assim, a realidade não é, de fato, mais complicada. Dos telespectadores que acompanharam a morte do pequeno João Hélio na semana passada, quantos deles se indignaram com a violência? E quantos deles pediram vingança? Agora, eu pergunto, será que houve muitos que se indignaram com a situação social do país que os (des)abriga? Quantos pediram vingança, sentindo-se como sentiam-se os romanos à época em que o Big Brother ocorria no Coliseu, às custas de muito sangue e ossos estraçalhados? A besta, assim mesmo como a besta de José, despertou em seus âmagos. Pedem justiça, mas não sabem de justiça. Pedem direito, mas não conhecem direito. Exigem o fim da impunidade, mas votaram em Paulo Maluf, Aécio Neves, Sarney, Collor... Votariam em Serra, ou em seu coleguinha Alckmin... Votariam em qualquer pessoa, menos naquela, na única aquela, que pensou duas vezes antes de carimbar, a pedido de um público insano e ensandecido, a sentença de diminuição da maioridade penal, e se pôs contra ela, porque, vindo de pais analfabetos, analfabeto até idade adulta, semi-analfabeto toda sua vida, soube discernir o óbvio ululante. Por isto, apenas, e nem que seja, parabenizo a Luiz Inácio. E tiro meu chapéu. Parece que o Sapo Barbudo é ainda menos “blém blém blém” do que seus súditos, mas só parece, não me levem a mal.
Assim, encerro este texto com um pedido de auxílio aos poucos e poucas que nos lêem: Pensem duas vezes quando ouvirem os sinos ensurdecedores a tocar em suas mentes. Pensem que a loucura vale para um tanto quanto para outro. Pensem que, se exigimos o fim da violência, não podemos professar mais violência. Pensem que prender, especialmente no Brasil, já não adianta mais, porque nem quem o sistema adoraria ver atrás das grades, cabe mais por lá.
Resumindo, desliguem o “blém blém blém,” ou deixem o sino explodir um bumba infindável de intolerância, e com ela, tentem guiar nosso Brasil. Só não contem comigo.
PS: DOIS novos cartunistas colaborando com o Reação! Confie no talento de Rodrigo (Expresso) e nosso sócio Bruno Venâncio, com suas fantásticas charges! E a criação de um grupo de discussões do Yahoo para o Reação, montado por nosso administrador publicitário Vinícius, o Filósofo. Adriana Rezende de Oliveira também se juntou à família oficialmente, e fará a revisão ortográfica e gramatical de nossos textos. Obrigado a todos e todas que ajudam, ajudaram e ainda ajudarão ao Reação!
Aos abrax,
Roy Frenkiel,
O editor que nada edita
Alguém já ouviu essa expressão, mais facilmente encontrada saída da boca de meu tio? “Blém blém blém” não significa pancado, chapado, maluco, doido, esquizofrênico, ou qualquer outro distúrbio psicológico dos mais aos menos populares. Para um psiquiatra como meu tio, seria desrespeitoso chamar o doente mental de algo que ele não tem culpa nem escolha em ser. Quem tem escolha, quem pode com alguma dificuldade, mas pode ultrapassar seus próprios limites psíquicos e limitações pré-determinadas de sua infância, pode também evitar o ruído dos sinos imaginários que, geralmente, andam deixando muita gente surda.
No Brasil, o “blém blém blém” não é realidade exclusiva. Mundo afora, as pessoas estão cada vez mais doentes. Há alguns dias me pediram para analisar o mundo com um olhar mais positivo. Recuso-me, porém, a encontrar estúpidas positividades. E não vejo, exatamente, o que comemorar. Vejo, apenas, que o mundo precisa de um gigantesco psiquiatra, ou de bilhões de tamanho normal, mesmo. Está doente, e não falo do aquecimento global.
Pois se não, vejamos o conto de José Tavares, nome fictício, um trabalhador qualquer, casado com uma qualquer mulher, pai de quaisquer filhos. Trabalha doze horas diárias, sob a supervisão de um camarada chamado João, que por motivos também relacionados ao mesmo mal de José, o maltrata constantemente e se aproveita de sua insegurança. Faz com que José seja dois, três, quatro vezes José por minuto. Faz com que suas doze horas de trabalho se tornem vinte e quatro, porque José chega em casa e não consegue ser cem por cento José, pensando com tristeza calamitosa, que amanhã terá de estar por perto de João. E não é só João, são os chefes de João, e os clientes da empresa dos chefes de João, e os espinhos, e os cacos de vidro, e os assaltos, e as greves, e o cansaço extremo do dia a dia, de metade de cada dia, seis, sete vezes por semana doados ao trabalho por pão e água. No fim do mês, descobre que lhe faltará pão e água se quiser pagar o aluguel. Descobre que o que precisará para a cerveja, está comprometido com o sapato do filho. Inverte prioridades, mas naturalmente, nem toma as cervejas que gostaria, nem compra o sapato necessário para o filho. A boneca para a filha, então, nunca será comprada. Teriam de tirar do dinheiro para o arroz, e todo brasileiro sabe que comida sem arroz ou farinha não é comida. Neste esquema em que vive, José decide um belo dia, tomar mais cervejas do que em outros. Consegue saciar sua besta interna apenas quando a cerveja o adormece, e na ressaca do despertar no dia seguinte, volta ao trabalho. Antes, não encontrava tranquilidade em nenhum ponto de sua casa. Com a cerveja e a cachaça, agora acoplada à dieta diária, encontra alguma calmaria, e não seria estúpido em recusá-la. Passa a tomar mais cervejas e mais cachaças. Passa a regurgitá-las nas ressacas diárias... Sua esposa, um desses belos dias, o incomoda com alguma pergunta irrelevante. Incomoda seu descanso, e a cachaça lhe dá ânimos ao protesto. Protesta com muita veemência à interrupção de sua calmaria. Com veemência, bate na esposa, e de quebra, quebra alguns ossos dos filhos. É preso, e levado ao cárcere sem chance a apelos, pois, afinal, a justiça é apenas cega quando se torna daltônica. José, no caso, não é mais negro por já ser mulato. Após juízo, pega três anos de prisão. Prepara-se a quê, esse senhor José? À morte ou à regeneração? Mistério resolvido somente depois dos três anos. José volta para casa. Ainda desempregado, pensa apenas em descansar e re-aproveitar a perdida liberdade. Sabe, contudo, que precisa começar a trabalhar logo. Aprendeu uma quantidade incontável de ‘jeitinhos brasileiros’ na cadeia, e pensa em usá-los. Certo dia, é incomodado pela esposa, novamente. A mata. Vê que os filhos não podem sem mãe, e pensa com culpa no que os causou. Mata-os também. Percebe que agora se tornou um assassino da própria família. Não consegue viver com a culpa, e se mata. Final.
Fosse ele um menino de rua, sofreria tudo o que citei acima, mas sem emprego, e sem dinheiro para comprar cachaça ou cerveja. Sem João, mas com dezenas de Robsons e Almeidas, cabos e soldados da Polícia Militar. Fosse ele uma mulher, e não tivesse esposo, seria uma Maria, e roubaria a cachaça do patrão, a maquiagem da patroa. Sendo presidiário, o maltrato apenas acaba canalizado, centrado, intensificado, mas não novo. É disso que nascem as quadrilhas, e as quadrilhas são respeitadas pelo Poder Público, porque o público todo teme as quadrilhas.
José, se não matar seus filhos, há de educá-los. No entanto, com quais exemplos? À cachaça? O desespero? O sapato do filho? O incômodo da esposa? Como Washington, de dezesseis anos, saberá se comportar se apenas concebe fragmentos da paternidade que um dia o gerou, e tem feito apenas o contrário desde então? Não sei, pois, se saberá...
Claro que em meu linguajar popular, de uma pessoa que cresceu em países de linguas esquisitas, além do Português, talvez o leitor ou a leitora ainda não consiga enxergar uma realidade tão complexa refletida neste texto. Ainda assim, a realidade não é, de fato, mais complicada. Dos telespectadores que acompanharam a morte do pequeno João Hélio na semana passada, quantos deles se indignaram com a violência? E quantos deles pediram vingança? Agora, eu pergunto, será que houve muitos que se indignaram com a situação social do país que os (des)abriga? Quantos pediram vingança, sentindo-se como sentiam-se os romanos à época em que o Big Brother ocorria no Coliseu, às custas de muito sangue e ossos estraçalhados? A besta, assim mesmo como a besta de José, despertou em seus âmagos. Pedem justiça, mas não sabem de justiça. Pedem direito, mas não conhecem direito. Exigem o fim da impunidade, mas votaram em Paulo Maluf, Aécio Neves, Sarney, Collor... Votariam em Serra, ou em seu coleguinha Alckmin... Votariam em qualquer pessoa, menos naquela, na única aquela, que pensou duas vezes antes de carimbar, a pedido de um público insano e ensandecido, a sentença de diminuição da maioridade penal, e se pôs contra ela, porque, vindo de pais analfabetos, analfabeto até idade adulta, semi-analfabeto toda sua vida, soube discernir o óbvio ululante. Por isto, apenas, e nem que seja, parabenizo a Luiz Inácio. E tiro meu chapéu. Parece que o Sapo Barbudo é ainda menos “blém blém blém” do que seus súditos, mas só parece, não me levem a mal.
Assim, encerro este texto com um pedido de auxílio aos poucos e poucas que nos lêem: Pensem duas vezes quando ouvirem os sinos ensurdecedores a tocar em suas mentes. Pensem que a loucura vale para um tanto quanto para outro. Pensem que, se exigimos o fim da violência, não podemos professar mais violência. Pensem que prender, especialmente no Brasil, já não adianta mais, porque nem quem o sistema adoraria ver atrás das grades, cabe mais por lá.
Resumindo, desliguem o “blém blém blém,” ou deixem o sino explodir um bumba infindável de intolerância, e com ela, tentem guiar nosso Brasil. Só não contem comigo.
PS: DOIS novos cartunistas colaborando com o Reação! Confie no talento de Rodrigo (Expresso) e nosso sócio Bruno Venâncio, com suas fantásticas charges! E a criação de um grupo de discussões do Yahoo para o Reação, montado por nosso administrador publicitário Vinícius, o Filósofo. Adriana Rezende de Oliveira também se juntou à família oficialmente, e fará a revisão ortográfica e gramatical de nossos textos. Obrigado a todos e todas que ajudam, ajudaram e ainda ajudarão ao Reação!
Aos abrax,
Roy Frenkiel,
O editor que nada edita
4 comments:
É, meio inevitável falar desse assunto, não? Também sou pessimista; trabalho com educação pública há muitos anos. Não vejo seriedade alguma em muitos dos que ocupam cargos em prefeituras, governos estaduais, ministérios e presidência para realizarem as políticas públicas necessárias.
Por outro lado, cadê a contribuição da elite empresarial, que só sabe falar de reforma tributária e reforma trabalhista (pra esculhambar mais ainda os trabalhadores), e não se movimenta em nada pra diminuir o problema da desigualdade gritante e desumana do mível de renda. mexendo em suas margens de lucro?
E falando em políticas públicas, gostaria que o FUNDEB fosse tema em uma próxima edição do "Reação". Tenho algo a dizer sobre isso...Um abraço.
Gênio, era isso que faltava alguém dizer, nesse luto coletivo e cotidiano. Valeu a resposta.
bjs
Ophélia
Ácido, amargo, mas certeiro. Na veia. Certas chegas sociais nunca devem deixar de ser expostas. Lavou a alma.
Roy, há um quesito de sonoridade de que discordo. Acho que os assassinos não ouvem sinos, a trilha sonora é outra - os sinos remeteriam ao "não matarás". Acho que tem mais tambores e estampidos nas mentes dementes. De qualquer forma talvez haja um lado bom na evocação dos sinos - isso pode fazer lembrarem aquela regra, ao ouvirem os internos estrondos.
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