Canto de Nana
MASS MEDIA
Por Nana de Freitas
BOM PARTIDO - Rapaz solteiro, 24 anos, fiel, trabalhador e sem vícios, procura moça alegre e de família para namoro e compromisso sério.
Ele pagava aluguel num barracão de três cômodos. Gastava mais de uma hora pra voltar do trabalho, mas tinha cama de casal, um bom chuveiro e fogareiro de duas bocas. Um orgulho danado do ofício de técnico em eletrônica, com certificado de conclusão de ensino médio e carteira assinada há mais de cinco anos pela mesma empresa. Resolveu morar sozinho quando os pais voltaram para o interior, dois anos atrás, mas nunca se acostumou ao barracão vazio e à mesa com uma cadeira só. Mulher de bem não se conhece em bar, pensava. Anunciou sua solidão no jornal e torceu para que desse certo.
Ela tinha casa própria, na Zona Sul, computador, DVD, microondas e TV de 29’’. Propriedade sem escritura, como é comum no morro, mas de direito adquirido. E sem taxa de condomínio. Vendia roupas em uma loja no Centro por salário mínimo mais comissões e pagava heroicamente em dia nada menos que cinco crediários simultâneos. A recompensa pelo esforço vinha no domingo, quando curtia a sinfonia inigualável dos eletrodomésticos a tornar-lhe mais fácil a vida.
Leu o anúncio a caminho do trabalho. Ligou, falou, ouviu, sorriu. Combinaram, se encontraram, se beijaram e se gostaram. Não eram de se entregar facilmente, mas, diabos, o domingo custava a chegar, a escala de ônibus era reduzida e o preço da condução estava pela hora da morte. Concluíram que havia amor e perceberam que, o resto, já tinham: tesão, casa própria, cama de casal, fogareiro, geladeira e mais uns luxos.
Viver na Zona Sul o pouparia do aluguel e de duas passagens diárias em coletivos lotados. Para sanar o orgulho ferido na mudança, prometeu bancar sozinho as contas de água e luz e rachar com ela algumas folhas dos carnês de crediários. Com o 13º salário, comprariam alianças e reuniriam as famílias numa cerimônia simples.
Por quarenta e sete dias viveram como sonharam, com a melhor vista da cidade. Trocaram apelidos piegas, juras de amor, gentilezas e carícias. Planejaram três filhos perfeitos e teceram, em fantasia, futuro digno para cada um deles. Por quarenta e sete dias tiveram família, casa própria, carteira assinada e até um bocado de fé. No país em que vivem, afinal, quantos não têm tanto por um dia sequer?
O corpo de Valdir Peres da Silva, de 24 anos, foi encontrado ontem, atingido por cinco tiros, logo depois de um tiroteio na favela do Arranca-Toco. Segundo a Polícia Militar, duas gangues rivais disputam pontos de venda de drogas na região há mais de um ano. De acordo com o capitão Oliveira, comandante da operação montada para controlar a situação no Arranca-Toco, Silva seria líder de um dos mais violentos grupos que atuam na favela. “Esse homicídio engrossa as estatísticas dramáticas do tráfico de drogas no país”, disse o militar.
Por Nana de Freitas
BOM PARTIDO - Rapaz solteiro, 24 anos, fiel, trabalhador e sem vícios, procura moça alegre e de família para namoro e compromisso sério.
Ele pagava aluguel num barracão de três cômodos. Gastava mais de uma hora pra voltar do trabalho, mas tinha cama de casal, um bom chuveiro e fogareiro de duas bocas. Um orgulho danado do ofício de técnico em eletrônica, com certificado de conclusão de ensino médio e carteira assinada há mais de cinco anos pela mesma empresa. Resolveu morar sozinho quando os pais voltaram para o interior, dois anos atrás, mas nunca se acostumou ao barracão vazio e à mesa com uma cadeira só. Mulher de bem não se conhece em bar, pensava. Anunciou sua solidão no jornal e torceu para que desse certo.
Ela tinha casa própria, na Zona Sul, computador, DVD, microondas e TV de 29’’. Propriedade sem escritura, como é comum no morro, mas de direito adquirido. E sem taxa de condomínio. Vendia roupas em uma loja no Centro por salário mínimo mais comissões e pagava heroicamente em dia nada menos que cinco crediários simultâneos. A recompensa pelo esforço vinha no domingo, quando curtia a sinfonia inigualável dos eletrodomésticos a tornar-lhe mais fácil a vida.
Leu o anúncio a caminho do trabalho. Ligou, falou, ouviu, sorriu. Combinaram, se encontraram, se beijaram e se gostaram. Não eram de se entregar facilmente, mas, diabos, o domingo custava a chegar, a escala de ônibus era reduzida e o preço da condução estava pela hora da morte. Concluíram que havia amor e perceberam que, o resto, já tinham: tesão, casa própria, cama de casal, fogareiro, geladeira e mais uns luxos.
Viver na Zona Sul o pouparia do aluguel e de duas passagens diárias em coletivos lotados. Para sanar o orgulho ferido na mudança, prometeu bancar sozinho as contas de água e luz e rachar com ela algumas folhas dos carnês de crediários. Com o 13º salário, comprariam alianças e reuniriam as famílias numa cerimônia simples.
Por quarenta e sete dias viveram como sonharam, com a melhor vista da cidade. Trocaram apelidos piegas, juras de amor, gentilezas e carícias. Planejaram três filhos perfeitos e teceram, em fantasia, futuro digno para cada um deles. Por quarenta e sete dias tiveram família, casa própria, carteira assinada e até um bocado de fé. No país em que vivem, afinal, quantos não têm tanto por um dia sequer?
O corpo de Valdir Peres da Silva, de 24 anos, foi encontrado ontem, atingido por cinco tiros, logo depois de um tiroteio na favela do Arranca-Toco. Segundo a Polícia Militar, duas gangues rivais disputam pontos de venda de drogas na região há mais de um ano. De acordo com o capitão Oliveira, comandante da operação montada para controlar a situação no Arranca-Toco, Silva seria líder de um dos mais violentos grupos que atuam na favela. “Esse homicídio engrossa as estatísticas dramáticas do tráfico de drogas no país”, disse o militar.
6 comments:
Porrada!
A dor da gente não sai no jornal.
Nem sei, viu, Jens? Às vezes, acho que a dor da gente vira "dor dos outros" justamente quando sai no jornal... Pelo menos para a maioria... É como se tudo, depois de publicado, passasse a ser ficção... uma espécie de contra-ataque do inconsciente coletivo... Valeu pelo comment... Continuamos por aí, distribuindo e levando porradas... Abração!
Por isso é que o Millôr Fernandes costuma dizer que "quase sempre a gente evita o perigo errado". Brincadeiras à parte, seu texto que chama atenção. Inté.
Se correr, o bicho pega. Se ficar... Rssss. Se chamou sua atenção, Halem, já me deixou um bocado contente! Abração!
Nana, é claro que eu exagerei um pouquinho(!). É que, entre tantas outras, tenho paixão por frases de impacto como "A dor da gente não sai no jornal". Mas sai sim, às vezes. Se não no jornal, na web, como aconteceu na segunda-feira, 5 de março, no caso da morte da menina Alana no RJ. Rendeu um post lá na Trincheira, inspirado também pelo teu comentário.
Um abraço.
Sou tua fã, Jens! rs E nem é muito exagero... A publicação diária das notícias do mundo-cão acabam por amortecer seus efeitos sobre quem lê. É a tão falada "banalização", né? Não da notícia, necessariamente. Na minha opinião, quando isso acontece, infelizmente nós é que nos tornamos banais... Vou correndo conferir o post. Abração pra ti.
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