Thursday, March 01, 2007

MEMÓRIA 1

“Canudos não se rendeu”.
(Euclides da Cunha, em Os Sertões.)

Sob o sol glauberoterrense, o jovem fotógrafo quedou-se perplexo. Quando soube que a tradicional seca, padroeira de tantas fortunas ilícitas e candidaturas demagógicas, tinha conseguido secar o açude de Cocorobó, não pensou duas vezes: pediu de imediato as férias remuneradas a que tinha direito (trabalhômaco assumido, renunciara a elas nos cinco anos anteriores), espantando a todos na redação de O Estado de São Paulo, e refugiou-se no sertão. Quem lhe garantia que aquela não seria uma oportunidade única, que haveria outra chance? Pois bem, o momento enfim era chegado. Perante ele, ali estavam as ruínas da maior cãibrenáusea de nossa história republicana: o Arraial de Canudos.
Com o esmero habitual, preparou a câmera para iniciar o trabalho, ajustou o foco, olhou ao redor de si, como se procurasse algum ponto de referência que sabia não haver, porque nunca ali estivera, caminhou entre aquelas paredes insubmissas que insistiam em ficar de pé, apesar de tudo que se fizera contra elas e do nada feito por elas. Ali estavam, duras e eretas, testemunhas mudas de um genocídio, murmurando um brado que todos fingiam não ouvir. O fotógrafo encarou-a como um mártir encara a cruz que o santificará; elas olharam-no como uma virgem olha um belo homem que _ ela o sabe _ a engravidará e lhe dará as costas para sempre. Somente o Sol, que tanto conspirara para aquele encontro (como um patriarca bíblico que entrega a filha a um jovem sócio) testemunhou aquele monólogo a dois.

Sozinho entre aquelas pedras, lembrou-se de sua longínqua adolescência rebelde, quando usara drogas, pichara muros, sodomizara um primo e, expulso da escola, fora parar numa clínica psiquiátrica. Era onde as melhores famílias despejavam seus cristais trincados. Lá tomou choques, confessou que vivera e teve alta _ mas não antes de usar sua máscula e subversiva beleza (que redundante este adjetivo! não sabemos nós, indignados prisioneiros da sufocante mediocridade onipresente e niilipotente, que toda beleza tem de ser subversiva? Se quiser, então, caríssimo(a) leitor(a) risque-o) para seduzir uma enfermeira, saiu do esgoto doce esgoto da barbárie e emergiu para o trevoso jardim da sociedade de consumo, maculadamente reabilitado, porém mais maduro, apto para todas as cretinices que fariam dele o cidadão respeitado que afinal se tornara, o que, no fim, dava na mesma podridão. Só quem passou por essa antidantesca peregrinação forçada, do paraíso sem lei nem Beatrice ao inferno das doces aparências sem Virgílio e com os sombrios anjos tortos, poderia entender o que se passava ali. Só alguém como ele poderia olhar tranqüilo aquela agressiva inércia e compreender o trabalho a ser feito. Ele havia penetrado no inconsciente de uma nação, estava a relembrar traumas que o superego oficial condenara ao esquecimento. O que ele tinha a fazer era recolher matéria-prima para a confecção de um pesadelo que perturbasse o sono de um povo.

A cidadela pareceu entender o mudo discurso do fotógrafo e, quando o vento empurrou a nuvem que encobria o Sol, o ofuscante brilho das brancas pedras fez com que ele adivinhasse o sorriso daquelas ruínas, estampado em suas muitas cabeças imortais.

A fera foi ferida, S. João, mas não morta, sussurrou, quebrando o secular silêncio que gritava entre aquelas rancorosas ruínas. Canudos oferecia-se para ele, pronta para ser despida. Já não estavam ali a paciente e seu analista: eram agora a enfermeira e seu amante.

É preciso viver cem anos de solidão para perceber o quanto de carícia pôde haver nas pisadas do fotógrafo. A poeira desprendia-se do árido solo para beijar suas botas, as primeiras a marcá-lo após tanto tempo _ para aquelas ruas serem novamente pisadas era como se alguém pudesse descobrir-se adolescente aos cem anos ou, viúva, sentir-se redeflorável (Isso só pode dar-se porque o passado é tudo aquilo que permanece).

Aquele solitário homem que tocava seu violentado corpo a faz recordar todos aqueles que a habitaram, há tanto tempo, indo e vindo por suas artérias, ouvindo suas tácitas queixas contra os maus-tratos do Sol, confidenciando-lhe justas reclamações contra a estranha fera República (que eles nunca haviam visto, mas já sabiam ser sua inimiga). e era um não acabar de cantos, rezas e procissões, pedindo aos Céus chuva e a vinda de um rei que jamais conhecera, mas sobre quem o vento já havia lhe falado, quando o Beato Sebastião passara pela Pedra bonita. Antes que a chuva viesse, vieram tropas e ela pensou que eram os exércitos do Esperado, prontos para destruir a República e fazê-la capital de seu reinado. Ela então sorriu por todos os grãos: suas fronteiras se expandiriam e logo se estenderia por todo sertão. Estava na hora de recolher ao seu seio todos aqueles esquálidos titãs que se arrastavam, heróicos, pelas terras circunvizinhas.

Enganara-se. Os soldados que chegaram não vinham dos areais da áfrica nem das cortes de Lisboa. Vinham das terras do Sul, a serviço da tal República, prontos para destruí-la e ali implantarem a ordem e o ossergorp. Em sua defesa, ergueram-se os filhos que a adotaram como mãe e deram-lhe de beber o sangue dos invasores que matavam seus protegidos. O líder deles estava num cavalo branco, o que permitiu que o Conselheiro o reconhecesse como o Anticristo. Quando os justiçaram, ela não quis receber seus corpos, por isso sua gente não os enterrou.

Por Edson Amaro

1- Este texto foi originalmente publicado pela Prefeitura de Porto Alegre, RS, no livro “Histórias de Trabalho 2002”, que contém os trabalhos premiados no concurso homônimo.

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