Vênus Contra-Ataca
A CRATERA
Por Camila Canali Doval
Há uma cratera sob meus pés. Uma cratera do tamanho daquela de São Paulo. Não, maior. Uma cratera do tamanho do espanto da população. Da indignação da população. Do luto da população.
Onde já se viu um buraco daquele tamanho? Nos filmes de ficção científica? Nos piores pesadelos? Em um país onde tudo é possível? Sim, em um país onde tudo é possível.
O Brasil é essa coisa enorme e estranha que vemos e vivemos. Nele, acontecem coisas inimagináveis, tanto para o bem quanto para o mal. Nele, existem pessoas que não são pessoas, são uma forma divina qualquer; uma forma que suporta as piores provações; uma forma que parece o teste de resistência da obra de Deus.
Há uma cratera sob meus pés e ela me engole. Ela me puxa para baixo com a fúria da gravidade. Perder o carro. Perder a casa. Perder o filho. Perder o filho e todas as lembranças do filho. Só do coração nada disso se apaga. Dizem que desgraça pouca é bobagem.
Agora, a cada dia, encontram um corpo. Não bastou o soterramento, a sepultura antecipada. Tem que cavar, escarafunchar, encontrar, resgatar, identificar, cavar, escarafunchar e enterrar de novo. Tem que esconder bem. Tem que disfarçar bem o cheiro. Tem que fechar o buraco o mais rápido possível. Já pensou se sobra gente por lá? Um mendigo que ninguém reclama? Que não faz falta? Que não tem lembrança nenhuma para apagar? Tem que limpar tudinho. Recolher todinhos. Tem que calar os lesados com uns trocos e esquecer o processo na justiça. Que tragédia.
Há uma cratera sob meus pés, mas bem que poderia ser uma marquise sobre minha cabeça. Aqui em Porto Alegre tem disso também. Não se pode parar em qualquer lugar. Não se pode fugir da chuva. Os prédios antigos e mal demolidos desabam sobre os moradores. A cidade morta descarrega suas lembranças em cima dos cidadãos.
E uma mãe até entenderia uma tragédia do porte de uma cratera bem no meio de São Paulo; porém, não pode conceber sua única filha morta pela única marquise que caiu naquele instante na capital gaúcha. Pela minha própria mãe, a partir de agora, não vou mais pela sombra.
O Brasil é mesmo essa coisa enorme e estranha. Das maiores desgraças causadas pelos maiores equívocos vamos aos crimes mais hediondos cometidos por gente que não cabe em si de tão ruim. Gente que põem fogo em gente. Coisas que põem fogo em gente. Sei-lá-o-quês que põem fogo em gente. Porque não dá para qualificar a maldade em sua forma original e suprema. Não dá para nomear a nova espécie que criamos em nossos submundos. Não dá para discernir o que tem de nós em cada ato terrorista. Ou apenas, não temos coragem para fazê-lo.
O Brasil é enorme e é estranho; e pode ser mais enorme do que muitos, porém, não mais estranho. Falar dos problemas e dos horrores do Brasil não significa julgá-los piores. De forma nenhuma significa tomá-los como únicos. E nem de longe significa diminuir os do resto do mundo. Falar dos problemas e dos horrores do Brasil é simplesmente enxergá-los. Assim como são.
O mundo caminha junto e eu não arrisco dizer para onde. Quem dera ninguém agüentasse mais tudo isso. Mas nesse Brasil enorme e estranho as pessoas sempre agüentam mais um pouquinho, nem que seja só mais um pouquinho, porque em um lugar tão cheio de fé e de Deus viver sempre vale a pena, sempre recompensa, sempre faz sentido. E essa teimosia em fazer da vida o bem maior poderia ser ruim; se não fosse tão bom.
Em qualquer outro lugar as pessoas seguem porque têm que seguir... Vivem porque têm que viver... Suas cabeças vão baixas... Suas palavras vão caladas... Seus sonhos vão apagados... Em qualquer outro lugar as pessoas não notam que estão vivendo e que a vida ainda é o que há. Elas vivem, simplesmente, até a hora de morrer. Não raro olhamos para seus olhos e nada vemos. Não raro prestamos atenção em seus peitos para ver se ainda movem.
Mas no enorme e estranho Brasil os corações pulsam. Os pulsos batucam. E a vida samba. Nem ousarei plagiar Milton Nascimento sobre a estranha mania dessa gente em ter fé na vida. Para mim, a mania não é estranha. Estranha é essa gente. Que não é gente, é qualquer coisa que Deus insiste em alimentar.
Estranho é esse povo enorme que vê na vida um céu todo azul e mesmo com o chão se abrindo dá jeito de voar.
Por Camila Canali Doval
Há uma cratera sob meus pés. Uma cratera do tamanho daquela de São Paulo. Não, maior. Uma cratera do tamanho do espanto da população. Da indignação da população. Do luto da população.
Onde já se viu um buraco daquele tamanho? Nos filmes de ficção científica? Nos piores pesadelos? Em um país onde tudo é possível? Sim, em um país onde tudo é possível.
O Brasil é essa coisa enorme e estranha que vemos e vivemos. Nele, acontecem coisas inimagináveis, tanto para o bem quanto para o mal. Nele, existem pessoas que não são pessoas, são uma forma divina qualquer; uma forma que suporta as piores provações; uma forma que parece o teste de resistência da obra de Deus.
Há uma cratera sob meus pés e ela me engole. Ela me puxa para baixo com a fúria da gravidade. Perder o carro. Perder a casa. Perder o filho. Perder o filho e todas as lembranças do filho. Só do coração nada disso se apaga. Dizem que desgraça pouca é bobagem.
Agora, a cada dia, encontram um corpo. Não bastou o soterramento, a sepultura antecipada. Tem que cavar, escarafunchar, encontrar, resgatar, identificar, cavar, escarafunchar e enterrar de novo. Tem que esconder bem. Tem que disfarçar bem o cheiro. Tem que fechar o buraco o mais rápido possível. Já pensou se sobra gente por lá? Um mendigo que ninguém reclama? Que não faz falta? Que não tem lembrança nenhuma para apagar? Tem que limpar tudinho. Recolher todinhos. Tem que calar os lesados com uns trocos e esquecer o processo na justiça. Que tragédia.
Há uma cratera sob meus pés, mas bem que poderia ser uma marquise sobre minha cabeça. Aqui em Porto Alegre tem disso também. Não se pode parar em qualquer lugar. Não se pode fugir da chuva. Os prédios antigos e mal demolidos desabam sobre os moradores. A cidade morta descarrega suas lembranças em cima dos cidadãos.
E uma mãe até entenderia uma tragédia do porte de uma cratera bem no meio de São Paulo; porém, não pode conceber sua única filha morta pela única marquise que caiu naquele instante na capital gaúcha. Pela minha própria mãe, a partir de agora, não vou mais pela sombra.
O Brasil é mesmo essa coisa enorme e estranha. Das maiores desgraças causadas pelos maiores equívocos vamos aos crimes mais hediondos cometidos por gente que não cabe em si de tão ruim. Gente que põem fogo em gente. Coisas que põem fogo em gente. Sei-lá-o-quês que põem fogo em gente. Porque não dá para qualificar a maldade em sua forma original e suprema. Não dá para nomear a nova espécie que criamos em nossos submundos. Não dá para discernir o que tem de nós em cada ato terrorista. Ou apenas, não temos coragem para fazê-lo.
O Brasil é enorme e é estranho; e pode ser mais enorme do que muitos, porém, não mais estranho. Falar dos problemas e dos horrores do Brasil não significa julgá-los piores. De forma nenhuma significa tomá-los como únicos. E nem de longe significa diminuir os do resto do mundo. Falar dos problemas e dos horrores do Brasil é simplesmente enxergá-los. Assim como são.
O mundo caminha junto e eu não arrisco dizer para onde. Quem dera ninguém agüentasse mais tudo isso. Mas nesse Brasil enorme e estranho as pessoas sempre agüentam mais um pouquinho, nem que seja só mais um pouquinho, porque em um lugar tão cheio de fé e de Deus viver sempre vale a pena, sempre recompensa, sempre faz sentido. E essa teimosia em fazer da vida o bem maior poderia ser ruim; se não fosse tão bom.
Em qualquer outro lugar as pessoas seguem porque têm que seguir... Vivem porque têm que viver... Suas cabeças vão baixas... Suas palavras vão caladas... Seus sonhos vão apagados... Em qualquer outro lugar as pessoas não notam que estão vivendo e que a vida ainda é o que há. Elas vivem, simplesmente, até a hora de morrer. Não raro olhamos para seus olhos e nada vemos. Não raro prestamos atenção em seus peitos para ver se ainda movem.
Mas no enorme e estranho Brasil os corações pulsam. Os pulsos batucam. E a vida samba. Nem ousarei plagiar Milton Nascimento sobre a estranha mania dessa gente em ter fé na vida. Para mim, a mania não é estranha. Estranha é essa gente. Que não é gente, é qualquer coisa que Deus insiste em alimentar.
Estranho é esse povo enorme que vê na vida um céu todo azul e mesmo com o chão se abrindo dá jeito de voar.
Camila Canali Doval
Camila Canali Doval, provável escritora, futura mãe de pequenos Caios, moça de família de comercial de margarina, formada em Letras, blogueira de plantão, taurina em alto grau (vide defeitos do signo), 26 anos de idade, infinitos de sonhos, incansáveis de busca, repletos de vida. Uma mulher de sardas assumida, apaixonada e feliz até onde pode e, olha, pode muito.
1 comment:
Fantastico, Camila... Voce tem um dom ;-)
bjx
RF
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